Olhe! A rua é mais do que uma rua...

terça-feira, 2 de setembro de 2008

“Tenho que comprar leite”, “Não quero mais meu marido”, “Ai, meu Deus, tenho prova e vou chegar atrasada”, “Que saco subir esse morro todo dia”... na rua são pensamentos soltos e entrelaçados que se passam todo santo dia. Pessoas e pessoas que estão indo para todo lugar. Escola, trabalho, passeio. Gente preocupada, aliviada, estressada... Oh! Como são infinitos sentimentos no andar da rua.

Na minha rua, em especial, sempre que passo por ela sinto aquele cheiro gostoso de conforte, sabão em pó... cheiro de roupa limpa. A lavanderia de porta rosa. Todos os dias vejo aqueles gatos em meio às roupas dos vários universitários, meninos e meninas que, ou tem preguiça de encarar o tanque, ou é folgado mesmo.

E a lavanda que dona Marieta mergulha na roupa se alastra pelos quarteirões inteiros. Emanando aquele cheiro gostoso, que até bate aquela saudade de casa, da mãe e do aconchego do lar, que pelo destino é em outra rua, bem, bem distante.

Mas todo santo dia, a lavanderia está cheia. Cheia de roupa suja e imunda. E cheia de gente de todo lugar do mundo. E os gatos pretos, pardos, malhados, brancos fitam o meu passar todo santo dia.

Eles são os donos das ruas. Lembro de madrugada. Quem está nos arredores são os gatos. Benditos gatos. E a rua de casa fica sempre mais bela.

Ah! O cheiro. As ruas tem uns odores peculiares. Ali na rua de casa, além do cheirinho bom de roupa limpa, tem o cheiro das rosas de um quintal bem cuidado, da dona Lua. Rosas brancas, vermelhas, flores espetaculares que desconheço... são seres que perfumam a minha pequena rua ladrilhada de hexágonos de concreto. Apesar do cimento cinza é imersa de cores.

Sempre uma vez e outra também me passa rostos familiares na rua perfumada. Possíveis vizinhos, passantes com o mesmo horário, rostos que acabam se tornando conhecidos. E de repente, você se vê proclamando um belo bom dia, um oi tímido e até um: “e aí vizinho! Tudo bem?”.

Ruas perfumadas. Oh! A rua de casa é tão bela. E as pessoas que passam por ela são mais belas que as feras. Pessoas perfumadas andando pela rua perfumada. E todo dia buscando algo. Indo para algum canto. Vidas que em um momento se entrelaçam e se passam tão perto uma da outra. Que chega a sentir a energia dela, a aura, o humor do dia, e até consegue perceber qualidades e defeitos, entre um passar e outro. Coincidência engraçada! Passar pelas ruas e ver as mesmas pessoas.

Querendo ou não a rua sempre está ali: parada e móvel. Ela é a passarela de todo infortúnio e alegria. Todo desatino e felicidade. É através da bendita rua que vivemos a nossa vida, é por ela que chegamos na casa do bem amado, do emprego e deslumbramos a beleza da natureza.

É engraçado como algumas cidades têm suas ruas tão diferentes. Florianópolis tem um quê para morro, percebe-se logo que rua plana é balela por aqui. Aliás, ando bem, tropeço e encaro a rua todo santo dia. Desce o morro, sobe o morro.

A rua vai se esvaindo até se transformar em servidão. Como há ruas assim pela Ilha da Magia. Parece até que são feitas de pouquinho em pouquinho. É delirante. Servidão, travessa... são ruazinhas, filhas das avenidas. Talvez até há uma certa inveja. O movimento não é o mesmo e nem poderia ser. A servidão tão pequenina olha a grande avenida com certo desamor. E reza para que um dia, seja assim como ela. Cheia de bastante carros e milhares de pessoas: indo e vindo, indo e vindo.

Terra, cimento, sol, lixo, pobreza, esgoto, idosos, crianças.. rua, avenida, servidão, travessa, beco, gueto... Tudo bem no meio da rua.



Foto: Capa de 1908


(Crônica inspirada na obra A Alma Encantadora das Ruas escrita por um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro, João do Rio, que nasceu no dia 5/8/1881 e morreu no dia 23/6/1921)

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